Quem já visitou a cidade de Praga na República Checa certamente se deparou com uma estranha inscrição encontrada no famoso crucifixo da Ponte Carlos. Estranha porque não está escrita em latim, grego ou mesmo checo, mas sim em hebraico! Trata-se de um dos mais conhecidos episódios de tensão entre a Igreja Cristã e a comunidade judaica local.
Entre 1693 e 1700, tiveram lugar em Praga três julgamentos, conduzidos pelas altas autoridades do Estado e da Igreja. No primeiro, Elias Backoffen, um proeminente representante da comunidade judaica, foi julgado no Tribunal de Appelattus sob a acusação de blasfémia contra a Santa Cruz, que alegadamente teria feito através de uma carta codificada enviada a um amigo.
Depois de onze meses de procedimentos burocráticos, Backoffen foi considerado culpado e multado em 20 de Março de 1694, apesar do teor da carta nunca ter sido "descodificado". Ainda assim, o tribunal insistiu no seu carácter herético, descoberto através de uma "especial revelação do Todo-Poderoso". A multa seria usada para financiar a inscrição de letras douradas em caracteres hebraicos onde se lia: "Santo, Santo, Santo é o Senhor das Hostes" sob o corpo de Jesus no crucifixo - a frase é dita num dos momentos mais solenes da prece colectiva judaica durante os serviços religiosos: a Kedushá. A inscrição era uma simbólica humilhação e degradação dos Judeus de Praga uma vez que as palavras serviam para reverenciar o Deus Único de Israel e não o messias cristão.
A condenação de Backhoffen coincidiu com o início da investigação do caso Simon Abeles, um rapaz Judeu que, no Verão de 1693 teria fugido de casa e pedido que o baptizassem. Secretamente confiado aos cuidados de um Judeu convertido ao cristianismo, o rapaz foi então enviado para o Colégio de São Clemente onde os Jesuítas o prepararam para o baptismo. Entretanto o seu pai Lazar Abeles encontrou-o e levou-o de volta para casa. Os Jesuítas não levantaram qualquer objecção uma vez que o rapaz havia sido negligente no catecismo. Mais tarde se soube que a razão que levara o jovem Simon a procurar o baptismo não era de cariz teológica, mas sim fugir de um pai violento que se afastara dos mais básicos valores de amor paternal. Com o seu regresso, Simon continua a ser maltratado pelo pai regularmente. Em 21 de Fevereiro de 1694 Simon é severamente espancado pelo seu pai e outro familiar de seu nome Lobl Kurtzhandel. A dada altura sofre uma pancada tão forte que cai desamparado e parte o pescoço. Os dois homens tentam esconder o trágico desfecho enterrando o corpo do rapaz.
Depois de encontrado, as autoridades ordenam a autópsia do jovem Simon e prendem seu pai, sua mãe Leah e o cozinheiro da família. Um informador acusa os três de envenenamento do rapaz que mais tarde se vem a provar não ser a causa de morte. Entretanto, Lazar Abeles enforca-se de forma a fugir à habitual tortura, deixando Lobl Kurtzhandel como único arguido a enfrentar o tribunal. Procedimentos inquisitoriais foram seguidamente orquestrados pelos Jesuítas que aparentemente tencionavam tirar partido do caso para fins religiosos, nomeadamente a beatificação do rapaz.
Sob pressão, o Tribunal de Appellatus fabrica a acusação de homicidio premeditado por ódio à Fé Cristã. Em 31 de Março de 1694, Simon Abeles é enterrado com honras de mártir, com grande pompa e circunstância por parte da Igreja de Nossa Senhora de Tyn em Praga.
Kurtzhandel é condenado a ser espancado até à morte na Roda de tortura e é executado a 16 de Outubro de 1694. Antes da sua morte confessou publicamente o homicidio, mas não a sua premeditação assim como um hipotético cariz religioso, apesar desta ser a única saída dada pelo tribunal para a não execução da pena. A tortura que sofreu antes da estocada final só terminou quando este aceitou ser baptizado.
Um terceiro caso famoso foi o da judia Juttel Gunzburg. Em 08 de Abril de 1699 dois homens degolam a mulher levando consigo jóias de sua pertença. O corpo é lançado ao Rio Vltava. Em 14 de Maio de 1699, o Tribunal de Appellatus sentencia Johann Fitzthum (estudante) a decapitação e o padre Johann Wunderlich a uma vida de clausura num mosteiro. O público, com base em sentimentos anti-Judaicos, pediu a sua libertação. Violentos distúrbios provocados por estudantes colegas de Fitzthum levaram ao adiamento execução até 29 de Outubro do ano seguinte.