Quarta-feira, 29 de Abril de 2009
«Também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas; ele ficará com a cabeça descoberta e de cabelo solto, e cobrirá o lábio superior, e clamará: Impuro! Impuro! Por todos os dias em que a praga estiver nele, será impuro; impuro é; habitará só; a sua habitação será fora do acampamento.» Levítico 13:35-46

Resh Lakish (1) disse: O que significa "Esta será a lei do leproso?" (Lev.14) Significa: "Esta será a lei para quem comete a bisbilhotice" (Talmud Bavli; Tratado Arachin 15b)
 

Uma das coisas que aprendemos na parashá "Tazria-Metzorah" é que uma pessoa que padece de tzaarat (infecção leprosa) é isolada pelo sacerdote e deverá manter-se separado do acampamento durante um período de sete dias. É o procedimento puro e simples.

 

Mas uma vez que o Templo em Jerusalém foi destruído e o seu ritual destituído, muitas práticas se perderam, entre elas, as relativas a várias doenças dermatológicas tais como tzaarat. Os primeiros Rabinos, herdaram uma tradição que eles próprios não conseguiam entender ou identificar facilmente, tiveram de reinterpretar o problema de tzaarat de modo a manterem a tradição relevante nos seus tempos. Desta forma entenderam tzaarat como estando directamente ligado com Lashon Hara(2) aquilo que habitualmente chamamos de bisbilhotice.
 
Como assim?! Como pode uma doença dermatológica ter que ver com bisbilhotice?
 
Na verdade, talvez pouco. Uma vez que a citação de Resh Lakish demonstra, em hebraico, um interessante jogo de palavras entre "leproso" e "bisbilhoteiro". A palavra Metzorah, isto é, a pessoa que tem tzaarat, pode ser partida em motzi shem ra, que literalmente significa "aquele que dá um mau nome a outro". Isto é, bisbilhoteiro.
 
Existe também a situação de Miriam, irmã de Moisés e Aaron, que no livro de Números, capítulo 12, diz-se usar Lashon Hara contra Moisés e como castigo é afligida com uma maleita na pele. Mas não existe nada no texto em Levítico que, de facto, relacione a maleita com a bisbilhotice. Nada que nos diga que a pessoa afligida com esta maleita tenha falado maliciosamente de alguém. A unir estes dois tópicos sem relação aparente está o Midrash, (3) uma interpretação bem mais tardia desenvolvida pelos primeiros Rabinos, séculos depois que o texto bíblico foi escrito, para fazer relevante um texto, que com uma interpretação simples e directa parecia ser insuficiente.
 
Para mim, que gosto particularmente de interpretações simples e directas, não é suficiente. O que quero dizer com isto é que, eu já sei que bisbilhotar é errado. É algo mau. Quando abrimos a boca para dizer algo sobre alguém, corremos o sério risco de não pesar bem as palavras, e estas eventualmente farão ricochete e irão morder-nos onde mais nos dói. No entanto todos o fazemos! E pasmem-se com a minha "chutzpa" (4) : até acho que não é assim tão mau... depende do tipo de bisbilhotice.
 
Eu acredito que há boa e má bisbilhotice, e não, não me refiro a boa; como aquela que eu faço em relação aos outros e a má; como aquela que os outros fazem em relação a mim. A minha "chutzpa" não vai tão longe.
 
A palavra-chave é Aggadah (5) - sabedoria - Sem ela o Talmud seria um documento seco, abundante em argumentos "infinitos" para alcançar a certeza, mas desprovido desse sabor especial que faz dele uma compilação tão apaixonante e original.
 
A verdade é que somos todos "contadores de histórias". Possamos contá-las para fazer o bem e estaremos imunes a eventuais castigos dermatológicos ou outros. Imaginem o caso de alguém que foi despedido do seu emprego e nós comentamos com os nossos amigos "Sabes lá... então o David foi despedido! Pobre diabo... com mulher, três filhos, casa e carro para pagar". Palavra puxa palavra, bisbilhotice aqui, bisbilhotice ali e alguém conhece alguém que tem um emprego certo para a pessoa certa: o pobre do David, que acabara de ficar desempregado. Acaso não houvesse bisbilhotice, teria o David saído desta situação tão facilmente?
 
A bisbilhotice também preserva a nossa vida social e familiar, expõe os problemas dos nossos próximos e ajuda-nos a trazer a nós as histórias daqueles que ansiamos ajudar em caso de dificuldade. "Ama o teu próximo como a ti mesmo" poderia ser o mote da boa bisbilhotice.
 
Assim, concluo que bisbilhotar nem sempre é mau, para tal basta bisbilhotar com ética. Não soltar veneno, nem entrar em detalhes desnecessários, sempre sem soltar as rédeas das nossas más inclinações. Rav Yosef, um académico talmúdico do século IV, explica que Lashon Hara é uma das maiores causas de isolamento, afastamento e distanciamento entre as pessoas. Assim, uma pessoa que causa afastamento através de palavras de bisbilhotice, que ele ou ela espalhou, deverá experimentá-lo com o seu próprio isolamento.
 
GLOSSÁRIO:
 
(1) Resh Lakish - Rabino Shimon ben Lakish, proeminente Amoraim que viveu na provincia romana da Siria Palaestina no III século da era comum.
 
(2) Lashon Hara - ver no artigo "Antropofobia judaica e o manifesto à união"
 
(3) Midrash - Forma alegórica de explicar episódios bíblicos.
 
(4) Chutzpah - Termo yiddish que significa insolência, audácia, impertinência.
 
(5) Aggadah - Textos homiléticos e exegéticos da literatura clássica rabínica. No geral é um compêndio de homilias que incluém folclore, anedotas históricas, exortações morais e conselhos práticos sobre variados temas.

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publicado por Marco Moreira às 16:47
 
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