«A única vez que os Judeus estiveram unidos foi em vagões para Auchwitz, a caminho da morte»
Confesso que não me recordo se ouvi esta frase antes, mas dei por mim a dizê-la quando percebi que existem judeus que parecem dedicar parte das suas vidas a contribuir para a destruição de algo que deveríamos ter por sagrado: “Klal Israel”, isto é, a concepção de união entre a comunidade judaica universal.
Dta.: Julie Gordon, primeira mulher rabina de uma sinagoga reformista em Brooklyn, NY
Esq.: Judeu Haredi na sinagoga Kfar Chabad em Israel
Muitos livros se escreveram sobre o anti-semitismo e as suas origens. Muitas teorias se defenderam para tentar explicar este cancro que continua enraizado na humanidade. Mas poucos perderam tempo em tentar explicar porque existem judeus que dedicam a vida a destruir-se a si mesmo, a sua identidade e a sua comunidade.
As “birras internas” são tão velhas como próprio tempo e habitualmente um judeu aproveita os seus ditados para explicar as mesmas; "É normal vivermos assim, afinal de contas: Dois Judeus, três opiniões".
Mas este ditado famoso que deveria servir para retratar a milenar tradição talmúdica que moldou o povo judeu, serve agora para justificar as cismas e birras dentro deste mesmo povo.
Os Judeus sempre viveram melhor com o facto de serem diferentes dos outros povos que com as próprias diferenças dentro do seu próprio povo. Um exemplo fulcral é o ódio visceral entre os dois maiores movimentos religiosos do leste da Europa no século XVII. Hassidim vs. Mitnagdim, que poderíamos traduzir em português como “os piedosos” versus “os opositores”.
Com a chegada do Baal Shem Tov (Rabino Israel ben Eliezer), emerge na cena judaica do leste da Europa o movimento hassidico, que após a sua integração gradual acaba por se tornar maioritária nesta zona da Europa. Com a evolução de em movimento menos popular mas deveras pragmático e coerente, o Gaon de Vilna (Rabino Eliyahu Kramer) forma o movimento dos Mitnagdim e acabam por censurar as práticas hassidicas. O próprio Gaon de Vilna e os seus seguidores formaram um tribunal de lei judaica (Beth Din) e excomungaram os hassidim do judaísmo.
A amargura e animosidade entre os movimentos foram longe demais quando lutas físicas se travaram em Vilna para obterem a primazia dos referidos movimentos à comunidade judaica local perante a autoridade Russa.
Ainda hoje judeus destes movimentos não rezam nas mesmas sinagogas nem estudam os mesmos sábios e autores. Preferiram ambos ir contra a vontade de D’us e apartarem-se da comunidade, criando divisões e muros de fragmentação que envergonham o nosso povo.
Estou certo que ambos tentaram fazer o que achavam por certo, mas esqueceram-se que a razão e julgamento perfeito residem somente no Eterno. A arrogância com que travaram esta luta levou ambos os movimentos a defender a tese de donos da razão divina e mestres do dogma judaico.
Mais recentemente as correntes ortodoxas e liberais cortaram por completo relações entre si, pelo que é mais comum convidarem-se líderes de outras religiões para diálogos inter-religiosos, que para eventos meramente judaicos em que todos os movimentos marcam presença e dialoguam entre si. Chegou-se ao limite de chacotear e defender para si o direito de dizer «Quem é judeu» e «O que é ser Judeu» com uma aversão primária e torpe a um seu semelhante.
Mas a forma mais perigosa de destruição da tal comunidade judaica universal é a forma como nos apartamos da mesma sem darmos por isso. A forma como caímos nas malhas da tão afamada “lashon hará” * faz com que plantemos ícones do mal na nossa própria casa. É comum que achemos difícil colocar os tefilin todos os dias de manhã para nos conectarmos com D’us, mas conseguimos facilmente “conectarmo-nos” com um amigo para discutir a última birra na sinagoga ou no clube judaico. E sem achar que com isso não estejamos a contribuir para nos destruir, continuamos a fazê-lo até se tornar um costume.
Os sábios que do Pirkê Avot (Ética dos Pais) fizeram questão de focar os perigos da crítica e do apartamento da comunidade, certamente cientes dos males que constituem para o Povo de Israel:
(…) Hilel disse: Não te separes da comunidade; não te sintas seguro de ti mesmo até o dia de tua morte; não condenes a teu próximo até ter estado em seu lugar (…) Pirkê Avot 2:4
É um fenómeno pouco estudado esta auto-flagelação com que “brindamos” o nosso judaísmo, mas talvez resida aí esta aversão ao ser judeu e à comunidade judaica, porque definitivamente, isto não é judaico.
É óbvio que é um mal universal e não exclusivamente judaico! Mas a nós foi-nos confiada a aliança de sermos como sacerdotes entre as nações. Quando deixamos de fazer a nossa função deixamos de ser exemplo e passamos de universais a misantropos.
Mas quem sou eu? Estarei também eu a ser moralista? Estarei também eu a querer ensinar os judeus a serem judeus? Estarei eu também a fragmentar com a auto-critica? Estarei eu também a ser profeta da desgraça?
Não sei! Mas se as perguntas constantes moldaram o Talmud e o nosso povo, prefiro ser vexado com as respostas a ser refreado pela passividade. Afinal de contas ser obstinado é também uma virtude quando defendemos os valores éticos e morais do judaísmo e como o Rambam dizia:
«O risco de uma má decisão é preferível ao terror da indecisão»
Glossário:
Lashon Hará: Expressão hebraica que literalmente quer dizer língua ferina ou que fere. o mesmo que “má língua”, “mexerico”, “fofoca” ou “bisbilhotice”. As regras éticas do judaísmo estabelecem no Talmud fortes restrições contra a má língua: não se podem proferir afirmações depreciativas ou difamatórias sobre quem quer que seja, quer estas sejam verdadeiras ou falsas; não se pode dar a entender afirmações depreciativas ou difamatórias; não se pode nunca dar ouvidos a afirmações depreciativas ou difamatórias contra terceiros. Segundo algumas interpretações rabínicas, estas regras derivam da importância dada às palavras como forças criadoras e percursoras da acção. Assim como palavras positivas geram acções positivas, também as palavras negativas darão origem a actos negativos. (Glossário in "Rua da Judiaria")